THIAGO BOLIVAR
Neste breve estudo, pretendemos, através da análise das obras do escritor Paulista Paulo da Silva Prado (particularmente, a Paulística), coletar dados e informações que demonstrarão que, desde os primórdios de sua história, o povo habitante do que é hoje o Estado de São Paulo, sempre teve, em si, a nobre índole rebelde e altiva, característica dos povos cuja chama da autodeterminação jamais se apaga dos corações.
Teceremos comentários nossos, lembraremos outros autores, e aproveitaremos também para comparar dados antigos a situações modernas, encontrando às vezes fatos históricos que parecem se repetir dentro do universo Paulista, em um vai e vem curioso, onde mudam nomes e formas de governo, mas onde as situações permanecem virtualmente as mesmas.
Gostaríamos de agradecer aos inúmeros companheiros da LDP-SP, do MSP-PR, do MSP-SC, do MSP-RG, e outros que, mesmo não filiados aos mencionados movimentos, lutam individualmente pelo bem comum que é a causa Sulista. Esses companheiros foram como um belo Minuano moderado, alastrando dentro de nós a chama autodeterminista, espalhando-a na medida certa, sem soprar forte demais a ponto de apagá-la, mas tampouco deixando-a morrer por falta de combustível. A esses, que nos deram seu tempo, sua atenção, sua luz, suas críticas, suas sugestões, e todo o tipo de auxílio, fica um muitíssimo obrigado, e uma mão estendida eternamente, para que como irmãos nos ajudemos uns aos outros.
O AUTOR E ALGUNS COMENTÁRIOS INICIAIS: Contemporâneo de Alberto Salles (autor de Pátria Paulista) e de Mário de Andrade, este sociólogo, historiador e escritor Paulista viveu os gloriosos dias de inverno de 1932 em São Paulo, vindo a falecer em 1943, à idade de 74 anos. Os livros que aqui analisaremos, Retrato do Brasil e, em maior escala, a Paulística, nos dias de hoje muito pouco conhecidos fora do universo acadêmico, foram escritos respectivamente em 1928 e 1925.
A Paulística pretende, e o consegue ser, com maestria, o livro clássico da história de Piratininga, servindo como base para inúmeros outros livros do gênero que o sucederam. Nas palavras do autor: "Este é um livro de estudos regionais. Nele aparecem as figuras típicas da História Paulista: o Português aventureiro, o mameluco, o jesuíta, o Piratiningano - conquistador e povoador - e o fazendeiro" (Prefácio da 2ª Edição de 1934). Percebe-se claramente a influência da Paulística em livros didáticos, e até mesmo em séries de televisão contemporâneas, que buscam retratar ora os anos do 'descobrimento' (século XVI), ora, nos séculos seguintes, as Bandeiras, e as Missões por elas destruídas.
No mais famoso "Retrato do Brasil - Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira", Paulo Prado percorre a formação histórica não só de sua Pátria Paulista, mas do Brasil. O livro é uma coleção de críticas à história de um país que já teria começado de forma errada. Desfilam por ele aventureiros em busca de riqueza fácil, assassinos de povos inteiros, colonizadores afogados em suas perversões... Para Paulo Prado, contrariando de forma violenta e total tudo o que temos ouvido nos dias de hoje, o Brasil é um país triste, de gente triste. Haveria uma solução para fazer com que os povos que habitam este país-continente deixassem a tristeza por um sorriso verdadeiro - e não artificial, como se tem atualmente? O autor nada diz a esse respeito, limitando-se a descrever a "tristeza". Porém, seis anos depois de haver escrito o livro, ele diz: "A hipocrisia e a covardia não conseguem, entretanto, afastar das atuais preocupações o problema magno de nossa formação, - a questão da unidade nacional. Norte contra Sul, Litoral contra Interior, como conciliá-los na mesma estrutura rígida de uma constituição política, ou nas fórmulas de um programa de partido?". Seria esse "problema magno" a causa da tristeza do povo? Novamente, o autor não nos diz. Na verdade, nesse prefácio à Paulística escrito em 1934, menos de dois anos após a guerra e a ocupação do Estado Paulista por tropas Brasileiras, Paulo Prado chega a criticar os movimentos separatistas, elogiando a "(...) magnanimidade dos governos e dos chefes militares" que "(...) conseguiram em prazo mais ou menos longo dominar todos esses movimentos". Em uma época em que o separatismo era violentamente combatido por Vargas, não é de se estranhar que o autor assim se manifeste; no entanto, coisa curiosa, nos basta a leitura de seus livros para entendermos justamente o contrário - o autor vibrava com toda e qualquer manifestação de autodeterminismo Paulista.
É isso o que veremos, analisando principalmente a Paulística.
A ANÁLISE: Na década de 1920, estavam em voga teorias que falavam de diferenças raciais, e da superioridade deste ou daquele grupo em relação a outro. O meio ambiente moldava as raças e suas aptidões. Dentro desse universo que hoje em dia podemos classificar como amplamente racista e etnocêntrico, Paulo Prado seria quase que um 'mocinho' entre bandidos. Falava, é claro, de fatores que teriam "moldado o caráter e a raça Paulista", favorecendo-a em relação aos outros grupos humanos espalhados pelo continente. Mas suas teorias se aproximariam bem mais das teorias modernas, se comparadas às de seus contemporâneos.
Um desses fatores que favoreceram a criação do caráter Paulista teria sido a barreira quase intransponível, que representava, à época, a Serra, na capitania de São Vicente, "(...) umas serras tão altas que difficultosamente pódem subir nenhuns animaes, e os homens sobem com trabalho e ás vezes de gatinhas por não despenharem-se e por ser o caminho tão mau e ter ruim serventia padecem os moradores e os nossos grandes trabalhos" (Pe. José de Anchieta, 1585). Um grupo de Portugueses, ainda na época dos Lusitanos Camonianos, (aquele grupo vencedor, sonhador, de exploradores ávidos por novas descobertas), teria vencido aquela barreira e se estabelecido no planalto Paulista. Ali, o grupo original misturou-se aos bugres locais - igualmente fortes, audazes, de índole guerreira. Estava criado o núcleo original de Piratininga. Isolado naquele planalto, o grupo foi se desenvolvendo, mantendo em si o espírito de Portugueses Camonianos, aliado ao valoroso sangue indígena. Essa mistura criara um grupo humano adaptado às condições locais, e rebelde por natureza. Enquanto isso, a metrópole Portuguesa decaía, e com ela a colônia. Não era mais Portugal o principal país explorador. Não mais viviam ali homens do gênio de Vasco da Gama. A nação Lusa decaía. E com ela o Brasil. Todo ele? Não. Privado do contato com a metrópole decadente, evoluía isolado aquele grupo Piratiningano, no planalto: "A população do planalto se conservou afastada dos contágios decadentes da raça descobridora. O litoral, ao contrário, sobretudo o do Norte, daquele a que Theodoro Sampaio chamou por excelência o da 'costa do pau-brasil' - vivia como é natural em contato com a metrópole por intercâmbio marítimo muito freqüente, apesar da demora nas viagens da época".
Teria sido aí o começo da "tristeza Brasileira" à qual estariam sujeitos todos os povos do continente Brasílico? Aliás, nem todos. A tal tristeza, segundo Paulo Prado, atingiria todos os rincões do Brasil, mas em menor escala talvez a província do Rio Grande do Sul, que por influências Castelhanas, sobretudo na fronteira, teria uma cultura mais alegre, e um folclore menos triste, louvando a vida no pampa ao tocar das gaitas. Estariam eles livres de boa parte da tristeza do país, tal qual os Paulistas primitivos se viam livres dos contatos decadentes com a Metrópole? Teriam sido esses povos, por diversos fatores, posicionados fora do universo afetivo Brasileiro, se reconhecendo como diferentes? Curiosamente, São Paulo e o Rio Grande sempre foram os principais pólos do autodeterminismo no Brasil, sobretudo no século XX. Mas este é um assunto do qual pretendemos tratar em um estudo futuro. Voltando ao texto de Paulo Prado, encontramos uma surpreendente manifestação da autodeterminação de Piratininga, certamente ignorada por quase toda a população adulta no Brasil de hoje. Se for considerada como autêntica manifestação autodeterminista (e não duvido que a seja, pelo leitor atento), trata-se, salvo engano, da primeiríssima ocorrência do gênero, no Brasil (não considerando, é claro, as revoltas indígenas contra o invasor Branco):
"Em 1606", diz Paulo Prado, "um documento precioso, assinado pelos juizes e vereadores da vila de São Paulo, renova na mesma sinceridade brusca e altiva as afirmações de independência da população Paulista de serra acima. É uma carta de 13 de Janeiro desse ano, dirigida ao donatário da Capitania, reclamando contra o desleixo e os abusos das autoridades metropolitanas...". O trecho "renova na mesma sinceridade" faz alusão a documento ainda mais antigo, datado de 1557, contendo protestos contra a autoridade centralizadora. Mas, no momento, nos interessa a carta de 1606, que é quase um manifesto autodeterminista:
"O que de presente se poderá avisar muito papel e tempo era necessario, porque são tão várias a de tanta altura as cousas que a cada dia succedem, que não falta materia de escrever e avisar e se poderá dizer de chorar. Só faremos lembrança a Vmc. Que si sua pessoa ou cousa muito sua desta Capitania não acudir com brevidade póde entender que não terá cá nada, pois que estão as cousas desta terra com a candeia na mão e cedo se despovoará, porque assim os capitães e ouvidores que Vmc. Manda, como os que cada quinze dias nos mettem os governadores geraes em outra cousa não entendem nem estudam sinão como nos hão de esfolar, destruir e affrontar, e nisto gastam seu tempo, elles que não vêm nos governar e reger, nem augmentar a terra que o Sr. Martim Affonso de Souza ganhou e S. M. lhe deo com tão avantajadas mercês e favores. Vae isto em tal maneira e razão, que pelo ecclesiástico e pelo secular não há outra cousa sinão pedir e apanhar, e um que nos pedem e outro que nos tomam tudo é seu e ainda lhes ficamos devendo. E si falamos prendem-nos e excommungam-nos, e fazem de nós o que querem, que como somos pobres e temos o remedio tão longe não há outro recurso sinão abaixar a cerviz e soffrer o mal que nos põem. Assim, Senhor, acuda, veja, ordene e mande o que lhe parecer, que muito tem a terra que dar: é grande, fertil de mantimentos, muitas aguas e lenhas, grandes campos e pastos, tem ouro, muito ferro e assucar, e esperamos que haja prata pelos muitos indicios que há, mas faltam mineiros e fundidores destros. E o bom governo é o que nos falta de pessôas que tenham consciencia e temor de Deus, e valia, que nos mandem o que fôr justo, e nos favoreçam no bem e castiguem no mal quando o merecermos, que tudo é necessario".
Ao lermos o antigo texto, nos vem à cabeça o pensamento de que seria a sina do Paulista ser governado por elementos externos, e então reagir; ser vítima dos poderes centrais, que de uma forma ou de outra prejudicam seu povo; e, por fim, amar a terra e reconhecer seu valor, sendo esse valor subtraído por este ou aquele governo externo. Isso vem se repetindo ao longo da história. Alguns movimentos para tirar o povo Paulista desse ciclo maldito surgiram, aqui e ali, mas até a presente data, nenhum deles vingou.
Enquanto a Metrópole decaía, e os povoadores do Brasil central e setentrional se limitavam a percorrer uma estreita faixa litorânea em suas andanças, o Piratiningano do sul desbravava o interior do continente. Montanhas, selvas, pântanos, sertões: nada disso detinha os chamados "Bandeirantes", que praticamente fizeram com que o Brasil dobrasse de tamanho. Diz Paulo Prado: "Quando o país inteiro era apenas uma colônia vivendo no mesmo ritmo transmitido da metrópole, os Paulistas viviam a sua própria vida em que a iniciativa particular desprezava as ordens e instruções de além-mar para só atender aos seus interesses imediatos e à ânsia de liberdade e ambição de riquezas que os atraíam para os desertos sem leis e sem peias. A história do que se nomeou a 'expansão geográfica do Brasil' não é, em sua quase totalidade, senão o desenvolvimento fatal das qualidades étnicas do povo Paulista". Claro, que nem tudo era louvável nesse desenvolvimento; Missões foram destruídas, índios mortos ou escravizados. Esse é o pecado Bandeirante, pelo qual a escritora Yone Quatrim pede desculpas, em seu "O Mackenzie na Revolução de 32", ressaltando, porém, que a dívida havia sido mais que saldada. Vale lembrar que, por pior que tenham sido as incursões Bandeirantes, do ponto de vista dos índios, em nada se comparam elas à sanha assassina de Pizarro, Cortez, e tantos outros Espanhóis que assassinaram povos inteiros. A afirmação de que a parte sul do Brasil teria sido mais humanamente colonizada se tivesse permanecido em mãos Hispânicas, portanto, nos parece falsa, em que pese o fato de as Missões, em sua maioria, terem sido coordenadas por religiosos Espanhóis.
Eis o resultado geográfico da expansão Bandeirante, segundo nos diz o autor da Paulística: "No primeiro quartel do século XVIII a Capitania Paulista, criada em 1709, abrangia os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, até a Colônia do Sacramento". Uma imensidão sem fim de terras. A essas terras descobertas por Paulistas, confrontavam-se as terras que viviam sob o domínio total da Metrópole: O Rio de Janeiro, o atual Espírito Santo, o Nordeste Brasileiro... Talvez pelo fato de serem os limites, as pontas finais de terras tão diferentes, que abrigam povos com uma ideologia e formação histórica tão diversa, que São Paulo e o Rio de Janeiro sejam, até hoje, folclóricos rivais. Do Rio de Janeiro "para cima", incluindo-se até mesmo a Minas outrora Paulista, teríamos um tipo de formação e de caráter distinto: o das Cortes, o dos extremos entre riqueza e pobreza, o da terra sujeita ao mando da Metrópole. De São Paulo "para baixo", (em que eu incluiria também o Mato Grosso do Sul, atualmente), até mesmo o clima é distinto. É a terra do espírito livre, rebelde, selvagem e inquieto. Seríamos os "bárbaros" que vivem longe da civilização. Nada mais natural haverem choques no encontro entre duas tendências tão diferentes.
Uma a uma, as partes do território desbravado pelos Bandeirantes foram sendo tiradas de São Paulo. Quando foi a vez dos territórios do Rio Grande do Sul e da ilha e costa de Santa Catarina, em 1738, essas terras foram anexadas à Capitania do Rio de Janeiro, em um assombroso absurdo geográfico!
E nesse período do século XVIII, a que Paulo Prado chama o da "decadência de Piratininga", foram sentidas como nunca as afrontas do governo central. Diz o autor que "Até 1765 foi São Paulo governado pelo comandante da fortaleza de Santos, preposto do governador do Rio de Janeiro. É o mais triste e vergonhoso período da sua existência". Naquele ano, toma conta da Capitania um Português, "(...) o primeiro dos governadores que Portugal nos mandava obedecendo a toda sorte de conveniências, menos as da Colônia que vinha administrar. 'Dom Fulano é um fidalgo pobre: dê-se-lhe um governo', já dissera no século anterior o padre Vieira". Saberiam os primitivos Piratininganos que seus descendentes, entre os anos de 1930 e 1932, sofreriam do mesmo mal, e clamariam por um governante local, que atendesse ao povo, em vez de destroçar a província? Eis a História se repetindo, em seu ciclo ainda vigente.
Sempre há reações, no entanto. E como não esperá-las de um povo que não aceita mandos e desmandos de poderes alienígenas? Nesse mesmo século XVIII, temos um caso curioso. O sal comercializado na Colônia vinha inteiramente de Portugal, e por ele era pago um preço extorsivo. Cansado desses abusos, um fazendeiro de Jacareí, SP, de nome Bartholomeu Fernandes de Faria, "(...) reunindo uma numerosa tropa de índios, negros e capangas, descera a Santos para atacar os armazéns dos monopolizadores, de onde conseguiu retirar todo o sal existente, pagando-o pelo seu justo valor. De volta à sua propriedade agrícola, transformou-a o Paulista em forte praça de guerra, de onde pôde resistir durante anos aos ataques das autoridades. Só em 1722 [doze anos depois do ataque aos armazéns] foi ele preso(...)". Essa manifestação foi quase como uma Boston Tea Party ao revés.
A São Paulo dos Piratininganos cresceu, transformando-se na província que corresponde por mais da metade de toda a economia do Brasil, à época da conclusão da Paulística. É a província estranha ao resto do país, sendo esse choque tão bem descrito por Mário de Andrade em 'Macunaíma', quando o 'herói Brasileiro' deixa suas terras para entrar em uma São Paulo fria, cinzenta, de pedra, onde as cunhãs são tão brancas quanto o algodão. São Paulo evoluiu para algo completamente distinto daquilo que se reconheceria por 'Brasil', logo tornando-se elemento perigoso dentro das fronteiras do mesmo. Um corpo estranho que precisava ser combatido, neutralizado, suplantado.
A História Paulista, como vimos, se repete. E a roda continuará girando, em seu ciclo, até que dela se liberte, de vez, o povo Piratiningano.
O autor foi membro da Liga de Defesa Paulista, instituição que findou seus trabalhos poucos anos após a virada do milênio.
Publicado originalmente em 13/01/2014